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"The Handmaid's Tale" (O Conto da Aia, no Brasil) chega na sua segunda temporada ainda mais crítica e forte para os telespectadores da premiada série.

​A sociedade distópica de Gilead em The Handmaid’s Tale, comandada por “cidadãos de bem”, é teocrática, misógina, homofóbica e, principalmente, hipócrita. Qualquer semelhança com ideais defendidos na vida real não é mera coincidência.


“Use o vestido vermelho, use as toucas, cale a sua boca, seja uma boa menina. Deite-se e abra as pernas. Sim, senhora. Que possa o Senhor abrir. O que vai acontecer quando eu fugir?”

 

A tão esperada segunda temporada de The Handmaid’s Tale chegou ao Brasil em setembro pelo Paramount Channel. A curiosidade era grande, já que o livro homônimo de Margaret Atwood (de 1985), que inspirou a série, narra apenas os acontecimentos da primeira temporada. A continuação, portanto, é inédita e idealizada pelos roteiristas da produção.

Disponibilizada pela plataforma Hulu, a série é ambientada em um futuro distópico, onde um governo teocrático e misógino tomou o poder por meio de um golpe. A narrativa é centrada em June (Elisabeth Moss), que por ser uma aia (mulher fértil que se torna propriedade de uma família de classe alta), passa a se chamar Offred (ou seja, do Fred, seu Comandante). A primeira temporada, elogiadíssima pela crítica, apresentou a personagem e o cenário aterrorizante da República de Gilead (que se localiza no território dos EUA). A segunda, que estreou no país norte-americano em abril deste ano, foi recebida de forma mais controversa, com alguns críticos afirmando que a série estaria se tornando um “pornô de tortura”, por conta das cenas fortes e violentas que os novos episódios apresentaram.

Na nova temporada de The Handmaid’s Tale, conhecemos mais sobre as colônias, lugar onde as mulheres inférteis (ou “criminosas”) são levadas para cavar lixo tóxico, com muitas morrendo por contaminação. O primeiro episódio já apresenta esse novo ambiente e as cenas definitivamente não poupam o espectador. A crítica Lisa Miller, da The Cut, escreveu: “Apertei o botão de acelerar o vídeo com tanta frequência nesta temporada que sou obrigada a me perguntar: por que estou vendo isto? Tudo parece tão gratuito, como uma surra que não acaba nunca”, disse. Em contra ponto, a protagonista da série Elizabeth Moss, em entrevista ao The Guardian, rebateu os comentários de que os episódios estariam exageradamente violentos: “Não digo isso porque me preocupo ou não que vejam a minha série, não estou nem aí. Mas, ter coragem de ver uma série de televisão? Isto está acontecendo na sua vida real. Acordem, pessoal. Acordem.”

É inegável, no entanto, que algumas cenas podem servir de gatilho para espectadores mais sensíveis. Nem sempre escancarar situações de violência é a forma mais efetiva de trazer um olhar crítico em relação a determinado tema. A barbárie está presente na vida real, é verdade, mas existem formas menos explícitas de suscitar debate e reflexão sobre essas situações. De qualquer maneira, a crítica da segunda temporada de The Handmaid’s Tale (no título original) continua potente. Muitas nuances do machismo são abordadas – desde o mansplaining à abusos físicos. Os flashbacks, que mostram a vida nos EUA logo antes do golpe, garantem ótimas cenas.

Não se pode deixar de ressaltar que a atuação de Elizabeth Moss continua impecável: um simples olhar de June tem múltiplas camadas. Destaca-se também a presença de Alexis Bledel, a Rory de Gilmore Girls. Sua personagem, considerada uma “traidora do gênero” por ser lésbica, é uma das mais bem construídas da narrativa. A personagem Serena Waterford (Yvonne Strahovski), esposa do Comandante de June, é também complexa: se por um momento ela consegue ter alguma empatia com a aia, no outro os seus valores autoritários falam mais alto. “Cada um deve saber o seu lugar na criadagem”, diz.

Uma terceira temporada vem aí, provavelmente em abril de 2019. Fica a torcida para que as críticas sociais continuem contundentes e para que as cenas permaneçam impactantes, mas não sensacionalistas.

O valor da família (“Gilead valoriza a família. E recompensa todos aqueles que vivem sobre esses valores”) é característicos dos homens brancos, héteros e ricos que comandam Gilead, indo ao encontro de discursos autoritários, presentes inclusive no atual cenário político brasileiro. Afinal de contas, qual família que os donos do poder defendem?

The Handmaid’s Tale, em sua segunda temporada, deixa claro: gays, bissexuais e lésbicas não são bem-vindos. Assim que o regime autoritário toma o poder, a personagem Emily é separada de sua esposa e de seu filho. Um lar estável e amoroso é destruído. A traição masculina (com as próprias aias ou com prostitutas), por outro lado, é aceitável. Nesse ideal de família, só homens podem ter prazer com sexo. As mulheres, sempre submissas, devem ficar caladas. O objetivo número um é claro: reproduzir. A leitura, para elas, é uma atividade proibida – nada mais perigoso do que uma mulher que pensa, não é mesmo?

A família tradicional brasileira, oops, norte-americana distópica condena o estupro (e acredita que aqueles que cometem esse crime devem ser apedrejados), mas acham aceitável que a tal cerimônia (que nada mais é do que, pois é, um estupro) aconteça dentro de casa, com a Bíblia sendo recitada ao fundo. É a favor da vida, mas acredita que os que pensam diferentes devem ser enforcados em praça pública – e os corpos exibidos posteriormente. Os cidadãos de bem de Gilead podem trair, estuprar, matar, mas continuam sendo “de bem”. Para eles, crime mesmo é dois homens saírem de mãos dadas. Que deus (ou que a deusa) nos livre.


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