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Os refugiados pela ótica da teledramaturgia

"Órfãos da Terra" encerra com um legado de amor, humanidade e o alerta para acolhermos os refugiados, de onde quer que eles sejam.

“Órfãos da Terra” encerra com um legado de amor, humanidade e o alerta para acolhermos os refugiados, de onde quer que eles sejam.


“Em busca de segurança, cerca de 6,3 milhões de sírios estão deslocadas dentro do país e outros 5 milhões de refugiados da Síria estão no exterior, muitos em campos de refugiados. Muitas pessoas que haviam se mudado para a Síria fugindo de conflitos em Estados vizinhos hoje são novamente afetados pela violência. A imigração Síria é atualmente um dos maiores movimentos de pessoas no mundo”.

DADOS DO COMITÊ INTERNACIONAL DA CRUZ VERMELHA

 

PPara além dos jornais e instituições responsáveis por divulgar a situação dos refugiados em dimensão global, o público brasileiro se deparou meses atrás com a temática em outro formato. A problemática social ganhava vida no enquadramento das televisões de todo o Brasil, alcançando as casas dos telespectadores de um jeito ainda não visto e experimentado no país. Retratar as vivências e dificuldades dos refugiados, povos obrigados a deixar suas terras, era o desafio das autoras Duca Rachid e Thelma Guedes quando estrearam a novela Órfãos da Terra, em abril deste ano, uma produção ambiciosa e diferente para o horário das 18h.

 

Por Dentro da Narrativa

“Onde está / Meu irmão / Sem irmã / O meu filho sem pai / Minha mãe / Sem avó / Dando a mão pra ninguém / Sem lugar / Pra ficar / Os meninos sem paz / Onde estás / Meu senhor / Onde estás? / Onde estás?”, diz a letra cantada na abertura da produção que, de cara, já anuncia o tom chamativo da obra, tanto em sua construção, quanto no contato com o público.

A música Diáspora, dos Tribalistas, grupo formado por Arnaldo Antunes, Carlinhos Brown e Marisa Monte, nos acompanhou por todos os capítulos, conversando de forma poética com as dificuldades do mundo contemporâneo. Através de seu pop bem feito, o trio deu voz ao drama dos refugiados, que atravessam as fronteiras “no barco cheio de fariseus”, sejam eles cubanos, sírios ou ciganos. Nesse sentido, com uma investida grandiosa e rica, típica de telenovelas do horário nobre e séries da Rede Globo, a história apresenta a relação de amor de Laila (Julia Dalavia) e Jamil (Renato Góes), tendo como pano de fundo o drama de grupos expulsos de seu país de origem.

A partir de uma montagem visual impressionante, somos apresentados a, entre outros personagens, Laila, uma jovem síria que tem sua vida afetada pela guerra e por isso, junto com sua família, precisam abandonar o lar e partem para o Líbano. Em um campo de refugiados, ela encontra e se apaixona por Jamil, mas aceita se casar com o poderoso sheik Aziz (Herson Capri) para salvar a vida do irmão mais novo, gravemente ferido em um bombardeio.

Os mocinhos, Laila (Julia Dalavia) e Jamil (Renato G), e a vilã Dalila (Alice Wegmann)

Na noite de núpcias, após descobrir que o irmão não resistiu, ela foge e embarca com os pais para o Brasil rumo a uma nova vida. Porém, Aziz não desiste de ter Laila como uma de suas esposas e começa sua busca por ela, encarregando Jamil, homem de sua total confiança e apaixonado pela jovem, para encontrá-la. A partir daí começa uma trama de amor, perigo, esperança, que encontra no nosso país lugar para se desenrolar.

Ao longo da narrativa, Aziz morre e Dalila (Alice Wegmann), sua filha preferida, ocupa seu posto no comando dos negócios e maldades contra, especialmente, a família e amigos próximos da dupla de protagonistas. Extremamente amada pelo pai, por quem foi mimada, e cheia de vontades, a herdeira do sheik é desprezada por Jamil, para quem foi prometida, despertando nesta o ódio pelo casal.

Aziz (Herson Capri) e Fauze (Kaysar Dadour)

Capaz de tudo para acabar com esse romance, Dalila, interpretada pela atuação crescente e bem sustentada de Alice Wegmann, passa a nutrir uma vingança que parece existir apenas em sua cabeça, que até convence em um primeiro momento, mas com o passar dos capítulos tornou-se um aspecto fraco da história para ganhar tanto destaque quanto foi visto. Enquanto Alice mostrava um desempenho intenso e criativo como a vilã de Órfãos da Terra, por vezes conseguindo provocar no telespectador raiva e desprezo por suas atitudes, o caminho da sua personagem tornava-se repetitivo, e até mesmo, simples, para quem estava acostumado com o ritmo eletrizante da história em seu início.

A trajetória da novela, com início convincente e envolvente, foi aos poucos perdendo o fôlego, deixando de lado os impactos enfrentados pelos refugiados, para dar lugar a clássica história da teledramaturgia brasileira, baseada no roteiro marcado por maldades, ingenuidade e desencontros. Da metade até o fim, a trama tornou-se repetitiva e sinalizava a necessidade de caminhar para o desfecho, além de perder seu maior potencial, a condução chamativa para retratar um tema complexo, pouco compreendido e tão necessário de ser mostrado.

Hussein (Bruno Cabrerizo) e Jamil (Renato Goes)

A empolgação inicial parece ter morrido junto com o sheik e a sucessão de cenas passou a não mostrar fatos relevantes para a história, com real capacidade de interferir e mudar os rumos dos personagens. Dividida entre a vingança tímida de Dalila e os obstáculos na história central do casal de protagonistas, Órfãos da Terra tornou-se um pouco cansativa e encontrou sustento nos dramas coadjuvantes.

O fato é que a trama perdeu, de certo modo, a oportunidade de mostrar realmente a cultura e o modo de vida dos refugiados. Talvez pela preocupação com a aceitação ou o processo de produção, a narrativa ficou presa a aspectos históricos e retratou a guerra e seus desdobramentos com alguns equívocos que não são coerentes com os acontecimentos reais. Essa característica causou, em alguns momentos, a sensação de não representar esse povo que assim, é mais uma vez violentado por meio da sua identidade, divulgada de maneira simples e romantizada.

 

Pontos Fortes

As tragédias e sofrimentos de uma guerra ganharam um tom mais leve e descontraído com o núcleo cômico de Órfãos da Terra. Com a dose adequada de humor e respeito, o quarteto romântico formado por Ali (Mouhamed Harfouch), Sara (Verônica Debom), Abner (Marcelo Médici) e Latifa (Luana Martau), foi capaz de arrancar bons risos do público em diversos momentos com suas confusões amorosas e personalidades marcantes. Além disso, há Mamede (Flávio Migliaccio) e Bóris (Osmar Prado) no comando de uma rivalidade de vizinhos que mais para frente, se transformou em companheirismo, incluindo questões religiosas, tradicionais e de saúde, acompanhados dos mascotes Salomé, a dogue alemã de Bóris, e Sultão, o chihuahua de Mamede.

Khaled (Rodrigo Vidal), Missade (Ana Cecilia Costa), Laila (Julia Dalavia) e Elias (Marco Ricca)

Ao longo dos acontecimentos, o núcleo foi se revelando bem construído, a melhor trama paralela de Órfãos da Terra. O conflito entre os árabes e judeus da novela se desenvolveu por meio do texto engraçado das autoras e na harmonia do elenco, que ainda dá lugar a Ester (Nicette Bruno), a mãe judia de Abner, figura controladora e conservadora, e Eva (Betty Gofman), mãe de Sara. Vemos durante os seis meses de exibição a prática de família ser expressada em suas mais diferentes maneiras, seja pelo cômico, o surpreendente ou o profundo.

As personagens de Valéria (Bia Arantes) e Camila (Anaju Dorigon) também surpreenderam com a reviravolta da dupla. De personalidades insuportáveis, descobriram o amor entre si e passaram a nutrir, até mesmo, a torcida da audiência que, aos poucos, foi se envolvendo com a redenção pelo sentimento entre as duas. Além disso, aliada a uma bela fotografia e uma montagem bem organizada, digno de um novelão, Órfãos da Terra foi logo questionada como produção digna do horário nobre, sofisticando as tramas das 18h a um nível maior e até, não esperado pelo público e a crítica.

Aziz (Herson Capri) e Dalila (Alice Wegmann)

Com um tema forte, Órfãos da Terra acertou, até certo ponto, por não pesar demais, deixando espaço para boas interpretações e o texto bem colocado mostrarem outros lados da realidade dos refugiados, como a adaptação em um novo espaço, oportunidades de trabalho, relacionamentos amorosos, além da importância da união e conscientização sobre a temática. Assim, a produção ultrapassou o discurso dos noticiários e conseguiu emergir a audiência no cotidiano daqueles que, de forma violenta e trágica, perderam seus lares de origem, tem de recomeçar em um novo lugar e precisam ser ouvidos.

Porém o perigo encontra-se na questão de não deixar claro ao público que aquela rotina enquadrada na TV é um recorte da realidade, não conseguindo trazer para a tela toda a complexidade e riqueza cultural daqueles que tentam fazer de outra terra seu abrigo. Assumindo isto, o conteúdo é capaz de trazer reflexão, além de apenas uma visão determinante sobre o objeto retratado.

Ainda, para embasar e dar estímulo a narrativa, seria necessário trazer novos detalhes para diversificar e fortalecer o roteiro, este que ganha ânimo ao dialogar com problemas contemporâneos e, até mesmo, uma causa humanitária em escala mundial que merece atenção e destaque. O fato é que Órfãos da Terra veio em um momento muito válido para a discussão, isto é, a noção equivocada por parte dos brasileiros da invasão de imigrantes ao nosso país, ameaçando os postos de trabalho e, até mesmo, a cultura.

Laila (Julia Dalavia) e Jamil (Renato G)

“Que não existam mais fronteiras fechadas, crianças sem pais, barcos sem portos para atracar, bombas que matam e incêndios que destroem memórias e culturas em nome da ganância e da intolerância. Que não existam mais gases lacrimogênios e sprays de pimenta, que ardem, cegam e nos impedem de enxergar o outro. Que angolanos, curdos, ciganos, bolivianos, tibetanos, palestinos, congoleses, indígenas, sírios, cristãos, judeus, muçulmanos deixem de ser órfãos e possam ser todos filhos dessa terra”. Assim, em uma das últimas cenas do capítulo final encaminhava a trama das seis para acabar.

Com um discurso inspirador de Laila, o restante do elenco e a produção da novela seguraram fotos de seus familiares que vieram de diferentes países do mundo, aproximando o tema daqueles que por meses deram vida aos refugiados e seus conflitos. Ainda, usando da palavra “Fim” exibida em diferentes línguas Órfãos da Terra terminou, deixando para a vida real e todos nós cidadãos, um legado de amor, humanidade e o alerta para ajudarmos os refugiados a, finalmente, se sentirem em casa e representados mesmo fora de sua terra.

EMMY INTERNACIONAL
Duca e Thelma mostraram o motivo de serem consideradas referências em elaborar grandes produções, lembradas na trajetória da emissora. Uma prova disso é Joia Rara, novela exibida entre 2013 e 2014, que concedeu as autoras o prêmio de Melhor Telenovela no 42º Emmy Internacional, em 2014.

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