fbpx

“Nanette” subverte o stand-up e serve como um tapa na cara, onde a comediante Hannah Gadsby usa seu próprio exemplo para fazer um apelo.


“Você compreende o que autodepreciação significa quando vem de alguém que já é marginalizado? Não é humildade, é humilhação. Eu me rebaixo para poder falar e não vou mais fazer isso. Nem comigo, nem com ninguém que se identifica comigo”. Essa frase ilustra a potência do monólogo Nanette, estrelado pela comediante Hannah Gadsby e disponível na Netflix. Suscitando o debate sobre temas importantes como a romantização da saúde mental e os desafios de fazer parte de grupos minoritários, o espetáculo ganhou notoriedade nas redes sociais do mundo inteiro.

Gadsby é uma mulher lésbica, nascida na região da Tasmânia, uma das mais conservadoras da Austrália. Formada em história da arte, já foi atriz da série Please Like Me (2013-2016), exibida pela TV australiana e incorporada pela Netflix em 2017. Trabalha há mais de uma década como comediante e é especialmente conhecida no país natal e Nova Zelândia. O espetáculo disponível no serviço de streaming, foi filmado há cerca de um ano na Ópera House, em Sydney. A primeira parte da produção funciona mais como um stand-up convencional, aproximando o público da história da comediante. O segundo ato é mais tenso e reflexivo, dando espaço para que Gadsby revele mais detalhes sobre a sua trajetória e questione, inclusive, piadas que ela mesma escreveu e fez no começo do monólogo.

Há quem enxergue o humor de Nanette como uma linha “politicamente correta”. Mas o que Gadsby faz é muito mais inteligente e complexo do que isso. Ela muda o alvo das piadas e realmente reflete sobre como o humor pode ser um mecanismo de perpetuar exclusões ou de aliviar tensões que, na verdade, não deveriam ser aliviadas. Muitas vezes, ao rir de determinado grupo que é historicamente ridicularizado e marginalizado na sociedade, estamos apenas reforçando essa marginalização e deixando de refletir sobre temas imprescindíveis. É nesse contexto que a comediante diz:

“Rir não é o melhor remédio. O que cura são as histórias. O riso é só o mel que adoça o remédio amargo”.

Quando a humorista muda o alvo do seu show de comédia para homens brancos heteronormativos, o que ela faz não é “preconceito reverso”, como muitos podem pensar. Ao rir de pessoas que estão no topo, Gadsby não colabora com nenhum tipo de exclusão que tenha respaldo na sociedade, pelo contrário: ela desperta reflexão sobre como as relações de poder funcionam. É interessante também quando a comediante afirma, ironicamente (tipo #forçaguerreiros), que “são tempos difíceis para homens brancos, já que é a primeira vez que eles são enxergados como uma subcategoria da humanidade”. Ou seja, homens brancos sempre se viram como o centro, o padrão vigente. Diante dessa lógica, mulheres, negros, homossexuais e transexuais eram classificados como “os outros”. Gadsby fala, portanto, a partir dos acontecimentos recentes, em que homens brancos poderosos finalmente têm sido condenados por crimes que cometeram (Harvey Weinstein seria um bom exemplo). Sabe-se, porém, que esses homens continuam sendo o grupo hegemônico da sociedade.

Desde que foi lançado, “Nanette” vem sendo aclamado pela mídia (e público) de todo o mundo, que destacam, principalmente, a sinceridade de Hannah em falar sobre problemas tão sérios

Não é de se espantar que Nanette tenha despertado tanto debate em diferentes países, considerando que o mundo inteiro está discutindo sobre a ascensão de grupos minoritários. Todas essas lutas ainda têm um longo caminho a ser percorrido, mas o espetáculo deixa claro que a comédia possui um grande potencial narrativo e que nunca é “só uma piada”.


Compartilhe

Twitter
Facebook
WhatsApp
Telegram
LinkedIn
Pocket
relacionados

outras matérias da revista

Ampulheta
João Dicker

Ampulheta / “Crepúsculo dos Deuses” (1950)

Se fosse necessário descrever Crepúsculo dos Deuses (1950), filme clássico de Billy Wilder, diria que se trata de uma história de amor machadiana. Por mais estranho que possa soar - afinal, nunca saberei se Wilder sequer leu Machado de Assis – o longa-metragem dialoga fortemente com Memórias Póstumas de Brás Cubas. O defunto-narrador do escritor brasileiro diz que escreve com “a pena da galhofa e a tinta da melancolia” e Wilder, enquanto cineasta-autor, faz o mesmo – e por consequência o seu narrador morto também – para contar um romance melancólico e sofrido com o próprio cinema. Ter um cadáver
Leia a matéria »
Back To Top