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Esta crítica faz parte da cobertura da 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que ocorre entre 22 de outubro e 4 de novembro em formato online.


Memórias são frutos da nossa inclinação natural ao ato de contar histórias. Uma estratégia de sobrevivência sustentada pela transmissão de ideias e pela preservação de sentimentos. No best-seller Sapiens: Uma Breve História da Humanidade, o historiador Yuval Noah Harari argumenta que a criação de uma memória coletiva foi fundamental no desenvolvimento do autoconhecimento e da autoconfiança perante a natureza indomada. É como passamos não só a nos entender, mas também a admitir uma dependência social acalentada pela construção dos laços afetivos. Toda cultura é um reflexo de memórias consolidadas.

O filme Um Dia Com Jerusa, dirigido por Viviane Ferreira aborda a sensação de acolhimento trazida pela retomada de uma identidade. Identidade essa que prescinde de documentos formais, de declaração de renda ou de qual a marca de sabão em pó preferida. Trata-se de um resgate de ideias e sentimentos que norteiam a quem se vê marginalizado por caricaturas de uma sociedade apática e desencontrada. Enquanto corre atrás de seus sonhos, Sílvia precisa lidar com questões de cunho étnico, familiar e sexual.

cartaz do filme “Um Dia Com Jerusa”

A protagonista de Um Dia Com Jerusa é Sílvia (Débora Marçal), uma jovem que pretende cursar história nas universidades públicas de São Paulo. Trabalhando como pesquisadora de mercado, ela se vê ansiosa e ocupada bem no dia da divulgação do resultado de um processo seletivo. Depois de entrevistar o lascivo Seu Lourival, do bar da esquina no bairro do Bixiga, ela bate a porta de Dona Jerusa (Léa Garcia), que coincidentemente comemora seu 77º aniversário e aguarda pela chegada da família.

Apresentado como um ensaio sociológico a partir de planos estáticos e oferecendo inicialmente um olhar distanciado dos personagens, Um Dia Com Jerusa aos poucos se converte numa peça alegórica e intimista. Os tons frios da fotografia são gradativamente substituídos por amarelos mais intensos na medida em que nos aproximamos das duas. O trabalho com as cores é cuidadoso, vide o plongée que enquadra os peixes nadando no poço ou o plano-detalhe sobre as manchas de sangue removidas de uma calcinha no chuveiro.

Essa transição percebida ao longo dos 74 minutos de projeção reflete uma jornada de remoção das marcas contemporâneas. Para qualquer um que a recebe, a primeira impressão sobre Sílvia recai no papel da entrevistadora fria, de aspirações quantificáveis e sem paciência para escutar suas histórias; a pessoa que não aparece na sua casa para um café, mas para te enquadrar numa série de definições que constam na prancheta. Nós, como espectadores privilegiados por detrás da quarta parede, somos previamente apresentados a sua situação de vida quando conhecemos sua casa, sua rotina, seus conflitos com a vó (que, numa brincadeira de montagem, nos faz pensar inicialmente ser Jerusa) e sua relação com a namorada.

Uma menstruação repentina é o que força sua estadia na casa da idosa por mais algumas horas. Enquanto ouvimos os relatos de Jerusa, passamos a entender melhor não só quem é Sílvia, mas especialmente o que trouxe Sílvia para aquela situação. Enquanto se apresenta, Jerusa destaca a sua relação com a fotografia. O roteiro não economiza em flashbacks, com um deles mostrando uma versão mais jovem da personagem fotografando eventos. Essa ênfase me fez lembrar das considerações da escritora Susan Sontag em Sobre Fotografia, especialmente quando esta se refere às fotografias como um processo de criação do “mundo-imagem, que promete sobreviver à todos nós”.

A escalação da veterana Léa Garcia contribui bastante para esse discurso. A atriz carioca não estreou no cinema com um filme qualquer. Em 1959, Orfeu Negro ganhava a Palma de Ouro em Cannes e o mundo conheceu, em meio aos intermináveis batuques de samba e outros personagens repletos de ternura, a alegre Serafina. Desde então, Léa Garcia construiu uma sólida carreira com uma quantidade surpreendente de filmes e novelas contracenadas.

A figura de Jerusa como um depósito de referências identitárias ganha camadas de simbolismo pela própria trajetória de Léa Garcia. Em uma das poucas cenas em que acompanhamos a câmera se mexendo, quando Sílvia visita um quarto repleto de fotografias de Jerusa, aparecem algumas imagens da atriz nos bastidores de Orfeu Negro como parte do acervo pessoal da personagem.

Uma trilha sonora bastante evocativa contribui para os momentos de maior reflexão ao longo do filme. Quando Sílvia atende ao estranho pedido de consertar a geladeira de Jerusa, somos apresentados a um primeiro plano que ameaça quebrar a quarta parede, trazendo os momentos de digressão da protagonista enquanto escuta sobre a vida de Jerusa. Esse experimento cinematográfico se repete outras vezes na trama, contribuindo para a formalização de uma proposta menos concreta e mais subjetiva de sua posição no mundo.

Ao preferir o “sabão em pedra” em relação ao sabão em pó, Jerusa destaca a relação da durabilidade. Fala de quantas trouxas de roupa dava pra lavar e ainda sobrava. É defendendo sua tradição que a personagem se estabelece como símbolo de uma resistência cultural em curso. Em Um Dia Com Jerusa, Viviane Ferreira aposta na força de planos como a negra idosa iluminada por um feixe de luz empoeirado que, como nas velhas fotografias, ganham tons amarelados. O mundo-imagem em que atores e seus personagens consagrados não envelhecem estará sempre ali. Mas para haver memória, para haver representação, é importante que alguém com a disposição de narrá-las.

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