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Ao assistir A Mesma Parte de um Homem um dos primeiros pensamentos que me veio à cabeça me fez refletir sobre como o filme desconstrói a imagem romântica da vida no campo. Se distanciando de uma valorização do ambiente bucólico, o longa de Ana Johann se situa nesse cenário do interior para dar espaço a uma narrativa focada em tratar das relações de poder entre gêneros por meio do sexo e da relação com o espaço.

Desde o início do longa acompanhamos uma construção de universo um tanto quanto fúnebre e com um senso de perigo latente. Nele, temos uma pequena casa em meio a uma plantação onde vivem uma família formada por um marido (Otávio Linhares), uma esposa (Clarissa Kiste) e a filha Luana (Laís Cristina).

Logo nos primeiros momentos, Johann nos insere na dinâmica patriarcal daquele núcleo familiar, com o marido na posição de mandante por meio de um comportamento “controlado”, porém muito sugestivo de lapsos agressivos, enquanto a filha e a esposa se se vêem acuadas nessa estrutura.

Digo estrutura porque a partir do desaparecimento do marido e da chegada de um homem estranho que perdeu sua memória (Irandhir Santos), o filme passa a desconstruir essa representação e a trabalhar uma encenação que vai se renovando a cada nova interação, principalmente entre a mãe e a nova figura masculina.

Assim, nos primeiros instantes em que a mãe e a filha estão sozinhas, o mundo exterior passa a ser o grande medo que paira sobre as duas em uma relação ambígua porque, afinal, não sabemos ao certo se há de fato o risco de violência lá fora, mas, ao mesmo tempo, o desaparecimento do pai cria esta enervante possibilidade da chegada de uma ameaça (ou do retorno de uma já conhecida). Há inclusive um excelente trabalho sonoro de ruídos de mato, de vento, dos latidos do cachorro e da casa velha que range durante a noite que fazem aquele espaço não ser convidativo e seguro como deveria.

Na medida em que o estranho chega e o dia a dia da família passa a se alterar, o longa cresce como um retrato de desconstrução das relações de poder entre os gêneros que é trabalhada pela via da fisicalidade – tanto espacial, mas, sobretudo, sexual.

Em A Mesma Parte de Um Homem o sexo não tem valor como prazer, falta libido e conexão. É uma mera ferramenta de opressão, de um verdadeiro domínio. Essa leitura se faz presente na diferença das cenas de sexo entre a personagem de Clarisse Kiste com os dois homens. No ato com Linhares, ela é subjugada, colocada em uma posição diminuída; já na transa com o personagem de Ihrandir essa posição se altera até no sentido sexual (afinal, ela passa a dominar aquele homem não pela via do desejo, mas sim pela utilização de seu corpo como uma forma de conquista de espaço, de poder e de imposição).

Com o desenrolar da narrativa vemos que aquele novo núcleo familiar passa a sugerir um resgate da opressão que, em dado momento, parecia ter se invertido. Com o desfecho e a tomada de decisão das personagens femininas, A Mesma Parte de Um Homem se edifica, então, como um retrato físico e revelador das estruturas de poder e dominação da sociedade – sejam elas evidenciadas na interação sexual ou na fisicalidade dos espaços e de sua ocupação por corpos de diferentes gêneros.


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