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"O Mistério de Silver Lake" faz um retrato cínico das idiossincrasias da existência humana em uma narrativa sustentada pelo estímulo visual.

“O Mistério de Silver Lake” faz um retrato cínico das idiossincrasias da existência humana em uma narrativa sustentada pelo estímulo visual.


QQuando pensamos em uma obra de arte atemporal, o que a faz sobressair perante outros trabalhos de um mesmo período é sua capacidade de sintetizar o zeitgeist que se encontra de maneira que, com o passar do tempo, sua potência não esteja atrelada a um conhecimento deste próprio contexto. Essa noção parece ser um dos focos principais de David Robert Mitchell em O Mistério de Silver Lake, filme que comprime a vivência contemporânea pautada na paranoia social causada por uma existência de estímulos constantes.

O mais interessante é como Robert Mitchell usa dessa lógica de uma sequência estimulante sem conexão clara para estruturar toda a narrativa de seu filme. É verdade que O Mistério de Silver Lake não tem uma estrutura muito linear ou direta, mas o objetivo do cineasta é mesmo se esvaziar de uma relação de conectividade forte entre as cenas para instigar o espectador a um estado de devaneio tal qual seu protagonista.

Ele, por sua vez, é Sam (Andrew Garfield) – o personagem símbolo de uma geração acostumada a consumir todo tipo de conteúdo rápido e acessível, desde quadrinhos, games e telejornais à filmes antigos. O jovem largado passa os dias observando o mundo em torno de sua varanda, especialmente focado na vizinha Sarah (Riley Keough), que após uma noite de interesse romântico e sexual, desaparece no dia seguinte. Daí em diante, acompanhamos Sam na investigação sem sentido do desaparecimento da garota, que decorre em uma aleatoriedade de acontecimentos que dialoga com essa visão de mundo cínica perante uma geração.

Riley Keough vive Sarah, a vizinha desaparecida do protagonista

A aleatoriedade está marcada, também, na própria motivação do protagonista e de tudo o que acontece: Sam se interessa pela vizinha unicamente pelo tesão que ela desperta e, posteriormente, mergulha na investigação pelo seu desaparecimento sem motivo algum. Da mesma forma, os sinais e pistas que o protagonista percebe estão presentes em elementos esquisitíssimos – de códigos entre moradores de rua, a mensagens escondidas em músicas, até em revistas de nudismo.

É aí que entra o apontamento de como o mundo tem funcionado em uma lógica de estímulos que ressignificam, mesmo que de forma efêmera, a existência em coletividade – afinal, o que melhor do que a cada momento ter uma nova centelha de uma experiência intensa que não gera consequências a longo prazo?

Assim, Robert Michell tece esse comentário com ironia ao se apropriar de símbolos iconógrafos e de situações quase que performáticas para evidenciar essa relação efêmera das coisas (o sexo descompromissado sem engajamento carnal ou emocional; as festas regadas a drogas e bebida; o biscoito e suco de laranja; os videogames e as apresentações musicais pretensiosas de jovens universitários).

Andrew Garfield em “Under The Silver Lake” (2018)

Com o desenrolar da trama, Sam adentra uma espiral delirante de acontecimentos tão absurdos quanto a paranoia conspiratória que o próprio protagonista ajuda a nutrir. Neste ponto, O Mistério de Silver Lake toma uma atmosfera hitchcockiana que entende esse potencial de narrativa de delírio como um interesse cativante para uma história que abraça a metalinguagem. Podem soar gratuitas as menções a diversas figuras da história do cinema ou o passeio – quase que de propaganda turística – pela cidade de Los Angeles, mas o fato é que o diretor constrói uma encenação pautada nessa aleatoriedade desconexa entre as cenas como unidade do todo e, por isso, renova sua encenação entre a comédia, o terror, o suspense e o noir.

Curiosamente, a narrativa não se preocupa em solucionar nenhuma das diversas pontas soltas apresentadas na investigação. Cada porta aberta por Sam leva a um novo lugar, a um novo universo dentro daquele emaranhado de situações absurdas, mas O Mistério de Silver Lake não as resolve porque essa é a tônica da experiência contemporânea. Afinal, existe algo mais representativo do mundo em que vivemos do que a constante paranoia que busca uma explicação, seja nas instituições oficiais, no senso comum, na cultura ou nas teorias de conspiração que tiram o tapete debaixo dos nossos pés para elucidar nossa percepção de mundo?

Ao final, com a resolução do mistério, fica latente que O Mistério de Silver Lake é tão interessante porque não se preocupa com o desfecho ou com a coerência das pistas entregues ao longo do caminho, mas é um filme que assimila muito bem, tanto em sua temática quanto nas soluções estilísticas de seu diretor, as idiossincrasias da vida humana.

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