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“Nós” faz um inteligente jogo de sentidos e percepção para entregar mais uma obra prima de Jordan Peele, desta vez focado nos EUA.


Depois do sucesso de Corra!, em 2017, o público e a crítica aguardavam com ansiedade o novo trabalho de Jordan Peele. Quando o elenco foi revelado, as expectativas só aumentaram. Nomes como Lupita Nyong’o, Winston Duke e Elisabeth Moss foram confirmados. O aumento no orçamento disponível para o diretor (de U$4,5 milhões, em Corra!, para U$ 20 milhões, neste) só fizeram com que muitos holofotes estivessem voltados para a produção, tornando-a uma das estreias mais esperadas de 2019. Em 21 de março, Nós chegou aos cinemas do mundo inteiro. E Peele definitivamente não decepcionou. O diretor entrega um filme surpreendente, interpretativo, que mistura e subverte elementos do gênero terror, além de carregar diversas referências e críticas sociais (nem todas explícitas).

A história, que se passa em 1986, é centrada nas férias de verão de uma família estado-unidense, formada pelo casal Adelaide (Nyong’o) e Gabe (Duke) e por seus filhos Zora (Shahadi Wright Joseph) e Jason (Evan Alex). A personagem interpretada por Lupita precisa encarar o desafio de voltar em Santa Cruz, onde passou por uma experiência aterrorizante quando era criança. Em uma atração do parque de diversões local, cuja fachada é “Encontre a si mesmo!”, a garota se depara com o que parece ser justamente uma outra versão dela mesma. O encontro a traumatiza pelo resto da vida. Quando Adelaide retorna para o mesmo parque de diversões, tem início uma série de (aterrorizantes) coincidências. O terror ganha forma quando o garoto Jason entra no quarto dos pais durante a noite e diz: “Tem uma família aqui na nossa garagem”. A relação dos personagens principais com esses intrusos (que se parecem muito com os próprios donos da casa) guia o restante do filme.

O elenco de Nós merece um destaque especial. A expressiva Lupita Nyong’o é a dona do filme e captura o olhar do espectador de forma irreversível. Elisabeth Moss aproveita todo o seu tempo tela e entrega uma personagem vaidosa e intensa, ao passo que os atores mirins também não deixam a desejar. Shahadi Wright Joseph, a Zora, consegue ir muito além do arquétipo da adolescente rebelde.

Vale lembrar que Jordan Peele apresenta uma significativa trajetória na comédia. Se em Corra! o personagem Rod (Lil Rel Howery) é responsável pela maioria dos alívios cômicos, em Nós esses momentos ficam a cargo de Gabe, o pai. Algumas falas podem parecer deslocadas, mas não tiram a tensão das cenas aterrorizantes.

Pode parecer difícil imaginar que o cenário californiano é ideal para um filme de terror, mas Peele (assumidamente inspirado por Hitchcock, que gravou alguns dos seus clássicos nessa mesma região) não falha na missão de construir uma atmosfera sombria para o ensolarado local. Sua direção se mostra eficiente desde a primeira cena, quando a garota Adelaide se distancia dos pais e percorre um curioso caminho até a tal casa dos espelhos. Os movimentos de câmera, combinados com a fotografia e a trilha sonora, passam para o espectador uma sensação de estranheza e tensão crescente. O excelente uso da cor vermelha em momentos pontuais também é digno de nota, assim como o ritmo da produção.

Mesmo não tratando da questão racial de forma explícita, Nós dá um passo importante em termos de representatividade. Segundo o próprio Peele, é como um cavalo de tróia (ou um cavalo de tróia antirracista, como definiu o El País), já que o público está vendo uma família negra como protagonista, mas não necessariamente precisa parar e pensar sobre essa questão em especial. “Esse filme não é sobre raça, mas existem tantas coisas nos EUA que são sobre raça. E esse filme é sobre os EUA”, garantiu o diretor, em entrevista ao site io9.

A crítica que o filme faz à sociedade norte-americana pode ser percebida logo pelo título original (US, ou seja, United States). “Utilizo os Estados Unidos como alegoria, já que é um país repleto de medo do outro, do diferente, do imigrante. Quando esse medo nos move, somos incapazes de fazer uma autocrítica  e a verdadeira ameaça se torna nós mesmos”, declarou o diretor ao El País. A frase “somos americanos” (que talvez seja explicativa demais), dita pelo clone de Adelaide em um momento crucial do longa, não deixa dúvidas sobre o alvo de Peele.

Há também claras alusões ao Hands Across America, evento beneficente que tinha o intuito de arrecadar entre 50 e 100 milhões para a caridade. A ideia era que milhares de norte-americanos dessem as mãos durante pelo menos quinze minutos e doassem uma quantia para os necessitados. Como recompensa, os participantes ganhavam uma camiseta comemorativa (peça que a personagem do filme Adelaide utiliza). Considerando que o evento foi patrocinado pelo então presidente Ronald Reagan, conhecido por suas políticas racistas e punitivistas, a manifestação como um todo parecia hipócrita – além de ter custado caro para os cofres e arrecadado bem menos do que o esperado. Do meio para o final do filme, pode-se perceber uma alusão ainda mais clara ao evento beneficente.

Com o plot twist final, o espectador provavelmente ficará com vontade de ver Nós de novo para perceber os sinais e o jogo de percepção que o diretor cria ao longo da narrativa. Ademais, voltará para a casa com a cabeça fervendo, em busca de teorias que possam ocupar as lacunas que o filme propositalmente não preenche. No final das contas, Nós é definitivamente um filme sobre a sociedade norte-americana, mas também sobre nós, brasileiros (que tanto admiramos o “american way of life”); nós, seres humanos; nós mesmos e o outro. E sobre como somos frequentemente o nosso pior inimigo.


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