fbpx
Em filme terapia para Bruce Wayne e para o gênero de heróis, "Batman" cresce como um grande noir sobre justiça e vingança.

Em filme terapia para Bruce Wayne e para o gênero de heróis, “Batman” cresce como um grande noir sobre justiça e vingança.


EEm qualquer gênero cinematográfico chega o momento do revisionismo. Em geral, essa posição de olhar para dentro surge naturalmente, a partir de um desgaste que, nos filmes de heróis, é evidente. É fato que a onda dos filmes de heróis já atingiu o seu pico e que o gênero agora passa pelo momento da renovação (os filmes “adultos”, por exemplo), então é mesmo natural que o novo Batman dirigido por Matt Reeves se apresente como um filme-terapia de várias coisas.

 

Este exercício de revisão e enfrentamento se dá em várias frentes: há um filme verdadeiramente autêntico e autoral que confronta a mesmice recorrente no gênero; há um processo de terapia do próprio personagem e, por último, uma reflexão a respeito do esvaziamento e desgaste da própria imagem dos super-heróis.

A opção de nos apresentar a um protagonista que vive apenas o seu segundo ano como vigilante traz de imediato para a equação um forte componente de aprendizado e provação. O que Reeves busca em Batman é transformar a jornada de Bruce Wayne como vigilante no próprio exercício terapêutico de tomada de consciência do personagem. Assim, acompanhamos um protagonista que, durante as três horas de projeção, passará por uma jornada de compreensão do que ele representa como herói e, ao mesmo tempo, do que confronta internamente quando veste a roupa, seja os males da cidade ou os traumas internos que carrega diariamente.

Como todo processo terapêutico, a interlocução se faz presente a todo momento e o roteiro de Reeves e Peter Craig se presta a criar uma narrativa em que o Batman trafega por Gotham encontrando desde assaltantes e figuras do mundo do crime, até a alta cúpula da cidade. Nestes encontros – que obviamente envolve diversos personagens do universo dos quadrinhos – são os momentos em que o protagonista aprofunda sua terapia e seu aprendizado pela interlocução.

Por isso, o voice over presente em alguns momentos do filme tem tanto um efeito prático quanto dramático. Mergulhamos na psique do protagonista, expondo os pensamentos, receios e inquietações de um Bruce Wayne perturbado e traumatizado a ponto de não perceber o quanto seu exercício de justiceiro é também um acobertamento das suas próprias frustrações. Batman é o filme do herói que melhor trabalha o drama e os tormentos do bilionário órfão e encontra uma forma de amarrar essa condição de abandono e orfandade à um discurso político sobre oportunidades e privilégios. E se temos um herói ainda em começo de carreira, errante e duvidoso, as soluções e o aprendizado passam também pela relação com o outro.

Na dinâmica entre o Homem-Morcego e a Mulher-Gato/Selina Kyle de Zoe Kravitz temos uma relação que, imbuída pelo tesão e desejo, permite ao personagem medir sua própria régua moral a partir do modus operandi de Selina. Na relação com o policial Jim Gordon de Jeffrey Wright temos o funcionamento da estrutura de suspense noir e buddy cop movie que dá fôlego a Batman, na mesma medida em que cria o contexto e as situações ideais para o protagonista demonstrar suas habilidades como investigador. Uma qualidade do herói que até hoje não havia sido bem trabalhada nos filmes.

Ainda, há também todo o confronto com o Charada (Paul Dano) e, talvez, a relação mais interessante para o drama do protagonista. Toda a jornada de investigação do quebra-cabeças arquitetado pelo vilão serve para acompanharmos as habilidades detetivescas do personagem e, claro, conhecermos as características sociopatas do antagonista, mas, também, nos permite acompanhar “por dentro” uma relação que nasceu de dois opostos que se atraem.

Em dado momento do filme – assim como nas grandes histórias das HQs e em O Cavaleiro das Trevas (2008) de Christopher Nolan – o Homem-Morcego escuta do Charada que sua figura mascarada e violenta o inspiraram. Uma realidade talvez não encarada por Bruce Wayne, mas certamente calculada por Matt Reeves para abarcar o discurso político e a profundidade da leitura da imagem dos heróis em um mundo onde o nazi-fascismo flerta com a legitimação uma outra vez.

É verdade que em meio a toda essa narrativa de investigação policial e suspense somada ao filme-terapia, temos momentos expositivos que dão conta de explicar o passo a passo do desvendamento do quebra-cabeça de assassinatos e, também, das descobertas de Bruce Wayne sobre o passado de sua família, sobre si mesmo e, claro, de sua cruzada como vigilante.

Se é tudo bem construído do ponto de vista dramatúrgico, temos também um grande filme no aspecto visual. A construção do mundo é impecável em dar vida a uma Gotham City que é, ao mesmo, noturna, suja e nutrida pela corrupção, mas também bonita, esperançosa e merecedora de uma segunda chance. Para isso, a fotografia de Greig Fraser constantemente capta a cidade e seus personagens oprimidos pelas sombras, pela pouca luz, por vidros molhados pela chuva. É uma visão de um mundo opressor, desviante, de fato noir (escuro, na tradução literal do francês) que ganha brilhos e cores nos neons da cidade e dos tiros disparados contra o herói.

Enquanto os longas de Tim Burton buscavam a estilização gótica, a trilogia de Nolan emulava a ação urbana à la Michael Mann e o violento Batman de Zack Snyder em um grafismo iconográfico, a estética de Reeves mira no cinema noir da nova hollywood para fazer um filme visualmente inquietante. No que diz respeito às cenas de ação, Reeves é muito competente e cria sequências muito bem coreografadas e inquietantes para mostrar como o herói sabe ser furtivo, agressivo e inteligente na hora de combater inimigos, vagar pelas ruas, vielas e cantos nas sombras.

Falando em sombras, a sequência de abertura do longa em que Bruce fala em voice over sobre sua relação com as sombras e o símbolo de medo que ele conseguiu criar para os criminosos é visualmente esplêndida. Uma das minhas favoritas com o personagem em todas as adaptações das telonas.

Já que o diretor se propõe a um processo de terapia com todo o filme, nada mais justo do que os embates aparecerem no meio do caminho. E quando o Batman de Robert Pattinson precisa lutar e ser violento, ele o faz sem pestanejar ou demonstrar medo algum de ser impedido. Há um traço de psicopatia, de perda da noção de mortalidade do personagem que é muito bem captada aqui e, em certo sentido, até o ímpeto suicida do herói se faz presente. E se Bruce Wayne tem traços de sociopatia e dissimulação, Pattinson é mesmo um dos atores mais talentosos para dar conta de uma atuação ao mesmo tempo caótica e austera.

Ao final, Batman é mesmo um filme que se presta a revisitar e refletir sobre o Homem-Morcego, o impacto de suas ações para sua cidade e para seu mundo. Mas, sobretudo, é um filme que tem a coragem de propor uma sessão de terapia sombria para seu protagonista, ao mesmo tempo que o guia em uma jornada de descoberta do que é a justiça verdadeira e, principalmente, do significado de o símbolo do morcego iluminar os céus de Gotham.

Compartilhe

Twitter
Facebook
WhatsApp
Telegram
LinkedIn
Pocket
relacionados

outras matérias da revista

Filmes
Bruna Curi

O mundo ideal de Guy Ritchie

De uns anos para cá, os estúdios Disney estão investindo em live-actions de suas animações clássicas, resgatando a magia e as lembranças afetivas de uma geração que cresceu com esses filmes. Entre os mais aguardados pelos fãs estava Aladdin, que chegou as cinemas neste mês de maio e é dirigido por Guy Ritchie (Sherlock Holmes e Rei Arthur: A Lenda da Espada). O filme começa mostrando uma embarcação com uma família a bordo, onde o pai conta para seus filhos uma história que envolve magia, uma lâmpada mágica, um tapete voador e membros da realeza. Envolvidos pela versão de Arabian

Leia a matéria »
Back To Top